domingo, 20 de março de 2011

O ESCRITOR E O ESCREVER: PRAZEROSO PENAR - NA VISÃO DE RACHEL DE QUEIROZ

Isaías de Oliveira Ehrich


A arte de escrever é, como já afirmaram alguns escritores e poetas (a exemplo de Fernando Pessoa e de João Cabral de Melo Neto), uma atividade exaustiva e verossímil.
Raquel de Queiroz, ilustre escritora cearense, também fala sobre essa atividade. Para exemplificar essa descrição, analisaremos duas crônicas da autora. A primeira intitulada Tudo mudou1, publicada no Correio do Povo em 2001; a segunda, escrita em 1952, O direito de escrever2.
Antes, porém, de analisarmos essas duas crônicas, conheçamos um pouco da história da autora, enquanto escritora.


Rachel de Queiroz: dama das letras



Aos 17 dias do mês de novembro de 1910, Fortaleza é presenteada com o nascimento da filha de Daniel de Queiroz e de Clotilde Franklin de Queiroz, a saudosa Raquel de Queiroz, a qual trilha o seu caminho entre o sertão e a cidade, do nascimento à morte, no Rio de Janeiro, em 04 de novembro de 2003.

Sempre rodeada pelos livros, Raquel de Queiroz, que ainda era família de José de Alencar, fez o curso normal, no Colégio Imaculada Conceição, em Fortaleza, diplomando-se em 1925, aos 15 anos de idade. Estreou no jornalismo em 1927, com o pseudônimo de Rita de Queiroz, publicando uma carta ironizando o concurso "Rainha dos Estudantes", no jornal "O Ceará", de que se tornou afinal redatora efetiva. Ali publicou poemas à maneira modernista. Três anos depois, ironicamente, quando exercia as funções de professora substituta de História no colégio onde havia se formado, Rachel foi eleita a "Rainha dos Estudantes". Com a presença do Governador do Estado, a festa da coroação tinha andamento quando chega a notícia do assassinato de João Pessoa. Rachel de Queiroz joga a coroa no chão e deixa às pressas o local, com uma única explicação: "Sou repórter".
Professora, jornalista, romancista, cronista e teatróloga. Foi a primeira mulher a entrar para a Academia Brasileira de Letras. Eleita para a Cadeira de n° 5, em 4 de agosto de 1977, na sucessão de Cândido Mota Filho, foi recebida em 4 de novembro o mesmo ano pelo acadêmico Adonias Filho.
Com vinte anos apenas, projetava-se na vida literária do país, agitando a bandeira do romance de fundo social, profundamente realista na sua dramática exposição da luta secular de um povo contra a miséria e a seca – “O Quinze”. Antes, publicou o folhetim "História de um nome" - sobre as várias encarnações de uma tal Rachel - e organizou a página de literatura do jornal "O Ceará".
No Rio, onde residiu desde 1939, colaborou no “Diário de Notícias”, em “O Cruzeiro” e em “O Jornal”. Célebre cronista, publicou mais de duas mil crônicas, cuja seleta propiciou a edição dos seguintes livros: “A donzela e a moura torta”; “100 Crônicas escolhidas”; “O brasileiro perplexo” e “O caçador de tatu”. Em 1950, publicou em folhetins, na revista “O Cruzeiro”, o romance “O galo de ouro”. Tem duas peças de teatro: “Lampião”, escrita em 1953, e “A Beata Maria do Egito”, de 1958. Além de “O Padrezinho Santo”, peça que escreveu para a televisão, ainda inédita em livro. No campo da literatura infantil, escreveu o livro “O menino mágico”. O livro surgiu, entretanto, das histórias que inventava para os netos de sua irmã. Dentre as suas atividades, destaca-se também a de tradutora, com cerca de quarenta volumes já vertidos para o português.
Recebe do presidente da República, Jânio Quadros, o convite para ocupar o cargo de ministra da Educação, que é recusado. Na época, justifica sua decisão, dizendo: “Sou apenas jornalista e gostaria de continuar sendo apenas jornalista.”.

Escrever para a Escritora...


Certa vez, a escritora, ou melhor, a jornalista Rachel de Queiroz – como gostava de ser denominada, enquanto profissional - em entrevista prestada a uma emissora de televisão, foi questionada sobre a arte de escrever e ela retrucava a entrevistadora dizendo que arte quem faz são pintores, atores, escultores e poetas. Ela escrevia não por arte, mas para sobreviver, porque precisava ganhar dinheiro. Escrevia não por amor, mas por necessidade. “Não tenho o dom de escrever. Antes de concluir um artigo, um romance (que não tenho mais idade para isso), uma crônica, saiba que perdi muitas horas de sono e cansei a mão e o juízo”, afirmava em desabafo.

Nas crônicas a serem analisadas – Tudo mudou e O direito de escrever , veremos que Rachel de Queiroz relatara também esse desabafo, abordando, além disso, outros aspectos tangentes a essa prática.

Em Tudo mudou, a escritora começa a fazer uma rememorização de uma cena que vira na infância, a qual a marcara, trazendo, além das impressões pessoais, um pouco da cultura cearense presente em suas obras, sobretudo – nessa crônica – no que tange o aspecto religioso, embora Rachel de Queiroz não tivesse fé em nenhuma divindade. Em seguida, ela descreve as artimanhas que os escritores utilizam para expor suas idéias; por fim, chama a atenção dos leitores para o fato do não-hábito de leitura do público.

Podemos notar pelo menos três aspectos relevantes no tocante ao ato da profissão escritor, em suas diversa modalidades, em Tudo mudou: 1) a verossimilhança; 2) a relação autor/leitor; 3) o não reconhecimento do escritor.

Rachel mostra que toda cena vivida ou observada por um escritor tornar-se-á um texto, seja em qual modalidade for:

Olha aquele romancista que assiste em prantos ao enterro do irmão predileto. Com um olho ele chora, mas com o outro espia o risco da morte na face descorada, o grotesco dos ritos fúnebres, a pancada da terra a bater nas tábuas do esquife, o ar de chuva no céu, o pó-de-arroz manchado de lágrimas no rosto da viúva. Espia e anota mentalmente e, não tarda, aparecerá um conto ou uma novela em que se mostre um defunto; uma tarde no cemitério num ar brusco de chuva e uma viúva a chorar.

Ela faz esse comentário e, como podemos perceber, acaba utilizando-se desse mesmo artifício, quanto traz para a crônica uma lembrança do seu passado, da sua meninice – como ela fala – para o texto:

Faz muito tempo, sei que eu era menina, e o que me impressionou não foi nem o nome do cardeal celebrante. Chocou-me a audácia do repórter. Imagine fazer chapa naquela hora sagrada e quase temível, quando todo mundo, de joelhos, curvava a cabeça, batia no peito e baixava a vista para o chão em reverência ao Santíssimo. No colégio se contava que um homem ficara cego por fitar atrevidamente a hóstia consagrada e, quando acaba, aquele homem do jornal não apenas olhava, mas tirava retrato!

E até hoje essa impressão de meninice a me dizer que o ofício se alimenta de tudo, inclusive sacrilégio, não mudou essencialmente...


Daí, podemos destacar um aspecto relevante que é a questão da verossimilhança: o escritor não cria nenhuma história, ele adapta fatos reais para compor seus enredos, seus escritos, como bem já afirmara Fernando Pessoa3 em um de seus célebres poemas:

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.


E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.



E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração


Nesse caso, façamos uma pequena adaptação para o que a autora de O Quinze já expunha, mais ou menos, dizendo que o escritor é um adaptador de histórias que envolvem o público de forma tal, que o fato narrado, por mais fictício que possa parecer, encaixa-se à história de um ou outro leitor. Essa identificação do texto com a história de vida dos leitores é denominada, nessa crônica, como sinceridade, mas não deixa de ser pura verossimilhança. E para tanto, os escritores farão de tudo para encantar o leitor, como ela relata ao citar o que vários dos grandes escritores foram capazes de fazer para manter o reconhecimento do público:

Ele, por isso, diz que é sincero, e as gentes, os leitores, lhe batem palmas pela sinceridade. E então aquela sinceridade voltada ao aplauso (ou filha de uma irrefreável necessidade de exibir-se?) cada dia mostra mais, ignora qualquer limite.

(...)

Em busca dessa sinceridade, Jean-Jacques Rousseau não se peja de contar que obrigava a pobre Teresa a enjeitar os filhos dele na roda dos expostos. Dostoievski esmiúça até a exaustão os seus espasmos de epiléptico, a terrível embriaguez do seu vício incurável, o jogo. Gide expõe, perversamente, as nuanças mais íntimas do seu desvio e, achando pouco, não nos poupa sequer o espetáculo de frustração e ressentimento que é a vida da pobre Emmanuelle. O’Neill, esse arrasta a família toda para a ribalta – literalmente a ribalta – a mãe morfinômana, os irmãos e o pai alcoólatra.


A partir de então, veremos que a relação mantida entre leitor e autor é de dependência. Principalmente deste quanto àquele, ou seja, o escritor, após cair no gosto do leitor, ficará muito voltado ao gosto do público:


(...) E o homem que escreve, então, vai-se despindo até o último pano, igual á rapariga do strip-tease, que pouco a pouco arranca a roupa do corpo bonito.

Mas no caso dele, a roupa não chega – o público do homem que ainda é mais exigente que a platéia dos espetáculos de nu artístico: ele então abre a arca do peito e mostra o coração batendo, rasga a barriga e exibe as entranhas. Mostra-se a qualquer hora do dia ou da noite, dormindo ou acordado, rezando e pecando, chorando, comendo, até na hora do amor, até na hora do parto – se o escritor é mulher.

Pelo que a jornalista coloca, o escritor chega a perder a noção de pudor para expor a sua vida em busca de material para leitura, algo que se torne sensacional, essencial ao gosto do leitor. Em O direito de escrever, Rachel de Queiroz também traz esse fato, só que por um aspecto mais fortemente descrito, mostrando a forte dependência que o autor se sujeita aos gostos do público leitor:


(...) Portanto, aí o pobre sujeito está perdido. Porque passou a pertencer ao seu êxito, fica escravo daquele sucesso (...) – fica, pois escravo daquele sucesso, e do trilho inicial não pode mais se afastar. Pode lhe vir inspiração em qualquer outro sentido. Pode ser ele tentado a seguir caminhos novos – mas é arriscadíssimo deixar-se cair em tentação. É quase certo que o seu público não gostará. O público provavelmente achará péssimo. Se o cronista Rubem Braga, um dos amados do público, deixar de repente de fazer suas crônicas e passar a escrever poemas lindíssimos, tão lindíssimos quanto suas crônicas, o público que até hoje o amou lerá os poemas com a sensação de que está sendo furtado; sim, furtado de todas aquelas crônicas que ele estava esperando e que, sub-repticiamente, às suas costas, sem o seu consentimento, foram viradas em poemas. E reclamará, e não comprará o livro de poesias como comprava o livro de crônicas, embora um seja tão bom quanto o outro; mas acontece que, com poemas, ele não está acostumado.

Apesar de fazer essas exposições acerca da relação mantida entre leitor e autor, Rachel de Queiroz nos mostra, até sob certa indignação, que esse público não reconhecerá o talento e o esforço dos escritores, deixando-os a mercê de seu trabalho. Árduo trabalho!
Ao final de Tudo mudou, a cronista em questão, nos mostra que, apesar de tudo, o escritor sente necessidade em expor suas idéias, embora elas não sejam só criação imaginativa, apesar de correr o sério, mas certo destino: seus escritos permanecerem intactos em prateleiras de livrarias à espera de leitores:

E para onde vai tudo isso? As confissões mais doidas, as saudades, os remorsos, os desgostos, os erros, as horas negras e, muitas vezes, os crimes? Vai para um altar, para o ouvido de um amigo, um coração confidente? Não queridos, vai para o balcão. Vai ser vendido, feito papel impresso – jornal, revista, livro, bilhete de teatro. Antigamente chegava a ser retalhado por cinco tostões – e menos, pois havia jornais de dois tostões. Hoje subiu de preço, mas ainda é barato, baratíssimo.
E assim mesmo, baratíssimo, muita vez fica a se estorcer nas vitrinas e se esganiçar nos palcos sem achar quem compre.


Em O direito de escrever, Rachel de Queiroz também levanta esses pontos abordados em Tudo mudou. Embora de maneira diferente de se expressar. Ela inicia a crônica abordando a questão da aceitação do leitor ao modo de escrever ( no nosso caso) do escritor. Até que ponto o autor tem direito sobre aquilo que escreve? Até que ponto ele pode dizer que o que relata é inspiração ou provocação do público? Para tanto, nossa cronista cita exemplos – nesse caso só exemplifica como possivelmente aconteceria (diferentemente do que fez na primeira crônica, onde a mesma, além de citar os nomes dos autores, expõe o que ele faziam para manter a aceitação do público) – se um determinado cronista mudasse de modelo de escritura. Pois, como bem coloca: “O público gosta de receber aquilo a que está acostumado. E detesta que um camarada a quem ele se acostumou, mude de cara ou de sistema”.

Em seguida, Rachel de Queiroz levanta a questão da “imparcialidade” do escritor; e nos mostra o porquê de que isso não é

tão verdadeiro, uma vez que:


(...) Todo artista produz para externar suas paixões, seus recalques, seus conflitos íntimos. Então como é que pode ser imparcial? (...)
Pessoas que escrevem, como as que pintam ou representam, são pessoas complicadas, parciais, cheias de personalismo, preferências, tais como as demais pessoas do mundo. E o público gosta da gente justamente quando lhe lisonjeamos as preferências e os personalismos. Aqueles de nós que tem mais êxito é precisamente aquele cujas referidas paixões, personalismos, etc., melhor coincidem com os da maioria.


Nesse trecho, ela aborda não só a questão da imparcialidade, mas também o fato de que o escritor inscreve em suas obras o seu subjetivismo, por mais objetivo que os seus textos possam-lhe parecer, as suas impressões, o seu ponto de vista estará impregnado no texto, querendo – ou não – deixar isso resplandecer aos olhos dos leitores.
Embora trazendo nessas duas crônicas em análise aspectos semelhantes, como é o caso da verossimilhança e, principalmente, a relação de dependência entre escritor e leitor, Rachel de Queiroz mostra em O direito de escrever – até justificando o título do seu texto dissertativo – que ela não se assujeita (assujeitar, nesse caso, fazendo-se uma alusão à noção de sujeito da análise do discurso, ou seja, deixar de expor o seu pensamento próprio para se submeter aos caprichos dos leitores) aos ditames do público, mas à sua opinião:
O distinto público desculpe, mas me recuso. Não abro mão do direito de opinar, e opinar errado, inclusive. Se o distinto público acha ruim, paciência. Sei que, como escribas assalariados, nós todos, para viver, dependemos do dinheiro do distinto público. (...) O distinto público compra os nossos escritinhos. Paga às vezes mal, às vezes generosamente. Mas compra só o direito de ler. O resto é nosso. Goste ou jogue fora, não nos obrigue a cortejar as suas opiniões.

Rachel de Queiroz, nessas duas crônicas analisadas (Tudo mudou e O direito de escrever), traz alguns aspectos em comum entre ambas, porém, o que fica mais destacado é a relação de dependência entre o escritor e o público leitor. Apesar de abordar esses aspectos em tempos diferentes, um em 1952 e, o outro, em 2001, quarenta e nove anos depois, de maneiras distintas, a autora mostra, em ambas as crônicas o seu estilo próprio, objetivamente subjetivo e direto de exprimir o seu pensar. Ache o público leitor bom ou não, ela repassa a sua visão de que escrever não é um ato somente prazeroso, mas cansativo e, muitas vezes, provoca desgostos ao escritor, pelo fato do não reconhecimento dos seus escritos e a não relevância de suas opiniões.
Apesar de saber que o escritor não é reconhecido, que a atividade de escrever, seja ela na modalidade romancista, cronista, poética, jornalística, não traz retornos financeiros, Rachel de Queiroz não desanima quanto a isso, pois – apesar de tudo – ela tem consciência de uma coisa, como bem coloca no último parágrafo de O direito de escrever: “O distinto público compra os nossos escritinhos. (...) Mas compra só o direito de ler. O resto é nosso”.
Parodiando o que Rachel de Queiroz fez ao final de O direito de escrever, atrevo-me a citar o mesmo trecho de Vitor Hugo, citado pela escritora – embora traduzido não ao pé da letra, mas ao entendimento próprio, para afirmar que o escritor tem que se manter a sua opinião livre, o seu pensamento livre, embora seja uma profissão árdua, contudo, prazerosa:



"Eu faço o que eu quero, e eu quero o que eu devo.

Eu sou livre, cavalheiro!”

Nenhum comentário:

Postar um comentário